
por Gabriel Gesteira, Maria Clara Barbosa e Vinícius Marcelo Rodrigues Costa.
No nosso encontro sobre literatura chinesa, realizado no dia 10/04, iniciamos com uma abordagem geral sobre a tradição literária chinesa, considerada uma das mais antigas e influentes do mundo. Com raízes que remontam à Dinastia Shang, a literatura chinesa se desenvolveu a partir de registros oraculares e evoluiu ao longo dos séculos, integrando aspectos culturais, filosóficos e artísticos.

Um dos pontos que mais nos chamou a atenção foi a forte ênfase estética na poesia chinesa, como foi falado em sala, que não se limita apenas ao conteúdo sonoro, mas também valoriza o aspecto visual. A caligrafia, com seus pictogramas detalhados, é parte integrante da experiência literária, tornando a escrita um objeto artístico por si só. A fronteira entre prosa e poesia é fluida, e muitos gêneros mesclam ambos os estilos. A poesia chinesa se destaca por sua brevidade, economia de palavras e estrutura rítmica baseada na métrica tonal e na rima final. Um traço característico é a omissão de pronomes e conjunções, o que intensifica a subjetividade do eu lírico.
Apesar da complexidade da caligrafia ter sido um desafio para a alfabetização, ela também foi um instrumento de unificação. Por não depender de uma forma fonética fixa, os caracteres permitiam que pessoas de diferentes dialetos se comunicassem por escrito. Isso conferiu à literatura um papel de coesão cultural dentro da China. Até hoje, é comum ver pergaminhos com poemas e trechos de prosa caligráfica sendo exibidos em residências, transformando essas obras em elementos do cotidiano.
Em seguida, tivemos a exposição do seguinte poema clássico escrito no décimo segundo século a.C. (Dinastia Zhou), de gênero canção cerimonial ou popular antiga, o qual foi traduzido por Lin Yutang na coletânea de poemas chineses clássicos Shijing (Clássico da Poesia), no qual pudemos ver na prática todas essas características apresentadas:
“Escrito no décimo segundo século antes de Cristo. Possivelmente, é a mais antiga canção.
À bebida no mundo.
O orvalho cai espêsso sôbre a relva.
O sol se pôs, finalmente.
Encha, encha até as bordas as taças de jade,
Ainda temos a noite diante de nós!
A noite inteira o orvalho ficará cobrindo
A relva e o trevo.
Em breve, bem breve, o orvalho secará,
Muito em breve a noite estará terminada!”
Por fim, abordamos os romances clássicos das dinastias Ming e Qing, que representam um marco na prosa narrativa chinesa e recomendamos como leitura:
- O Romance dos Três Reinos: Centrado em estratégias políticas e batalhas históricas;
- Jornada ao Oeste: Aventura espiritual com forte influência budista;
- À Margem da Água: crítica social por meio da história de rebeldes;
- O Sonho da Câmara Vermelha: retrato psicológico e social de uma família aristocrática.
Contos Lu Xun
Abordamos no encontro a vida e obra de Lu Xun, considerado o Pai da Literatura Moderna Chinesa. Vindo de uma família de letrados e eruditos, Lu Xun viveu de 1886 a 1936, um período de grandes tribulações e mudanças na história chinesa. Durante a vida do autor, ele presenciou a queda da dinastia Qing e a criação da República da China. O autor foi parte presente dessa história que mudava, sendo um dos líderes do movimento Quatro de Maio, de 1919, que valorizava o conhecimento científico, a democracia, a liberação feminina e um afastamento de preconceitos e superstições doentias da antiga sociedade chinesa. A forma de lutar contra esses aspectos nocivos de seu país foi através da literatura, buscando modernizar uma sociedade arcaica por meio dessa “ferramenta”.
O livro publicado no Brasil sob o nome de “O Diário de Um Louco: contos completos de Lu Xun”, traz todos os contos do autor para a língua portuguesa. Sua obra é marcada por simbolismos sobre desencanto e desorientação que refletiam o período que viveu, além de trazer personagens em busca de sobrevivência, enquanto lidam com emoções como a ansiedade, loucura e ambição. Uma de suas principais críticas expressas em vários contos era de que a sociedade chinesa era antropofágica, significando que se alimentava das individualidades e personalidade das pessoas. Lu Xun buscou expressar sua obra na linguagem popular, rompendo com a complexidade da tradição histórica da literatura chinesa que acabava por excluir a população. Mas apesar dessa rejeição a esses elementos negativos, os elementos clássicos da literatura chinesa ainda eram utilizados com domínio pelo autor.
Quanto ao PCCh, o autor, apesar de não fazer parte do partido, tinha certa simpatia e aproximação chegando a divulgar suas ideias, mas falecendo antes da tomada de poder pelo partido. Mao Zedong, que conviveu com Lu Xun, o admirava. Referia-se a ele como o “maior sábio chinês” acima do próprio Confúcio. Isso inicialmente deu um destaque para ao autor, mas depois, com a tentativa da sociedade chinesa de se afastar dos excessos do Maoísmo, esse fato levou o autor à obscuridade por um certo período. Atualmente ele vem sendo retomado, com suas ideias sendo valorizadas pela credibilidade de sua imaginação, ousadia e amor pelo indivíduo e a liberdade humana, agora sem o peso da ideologia que o partido tentou colocar em suas obras nos anos iniciais.
Após a introdução do autor, foram debatidos dois contos do livro da parte referida como “Histórias Antigas Recontadas”. Os contos escolhidos foram “Emendando o Céu” e “Ressuscitar os Mortos” por trazer questões sobre a espiritualidade, a natureza, a vida e a morte sob um olhar da Cultura Chinesa. O público presente teceu relações desses contos com os anseios vividos pelo autor e pela sociedade chinesa no período, indicando elementos dos contos que pareciam expressar esses fatos, além de realizarem aproximações sobre a literatura brasileira do mesmo período histórico, observando tanto semelhanças como diferenças.
Mo Yan
O único chinês a receber o Prêmio Nobel de Literatura: “um dos mais famosos, banidos e largamente pirateados escritores chineses”.
“(…) Estou bem ciente de que a literatura tem apenas uma influência mínima em disputas políticas ou crises econômicas no mundo, mas seu significado para os seres humanos é antigo. Quando a literatura existe, talvez não percebamos o quão importante ela é, mas quando ela não existe, nossas vidas se tornam grosseiras e brutais.” — Mo Yan, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2012
Para iniciar a abordagem da literatura chinesa contemporânea, foi apresentado o escritor chinês Guan Moye, sob o pseudônimo de Mo Yan — que significa “não fale” em mandarim, uma referência ao conselho que seus pais sempre o deram para que ele não se envolvesse em problemas devido à política local da época. Apesar de Gao Xingjian, vencedor da mesma categoria em 2000, ter nascido na China, ele possui nacionalidade francesa e, por isso, Mo Yan é considerado o único cidadão chinês a receber um Nobel de Literatura, o que ocorreu em 2012.
Como ferramenta para compreensão de seu estilo de escrita, conhecemos a história dessa importante figura. Nascido em 25 de março de 1956, filho de uma família de camponeses em uma aldeia do distrito de Gaomi, localizada na província de Shandong, costa leste da China, Mo Yan desde pequeno se destacou academicamente, principalmente em escrita, porém com o início da Revolução Cultural Chinesa tudo mudou. Aos 10 anos, um escrito seu na parede da escola fez com que seus pais tivessem problemas com as autoridades e ele foi forçado a deixar a escola e passar a trabalhar como pastor de gado. O contato com a natureza e os animais foi marcante em sua infância, constituindo uma bagagem de sua literatura.
Posteriormente, Mo Yan trabalhou em uma fábrica de algodão até que aos 18 anos ingressou no Exército de Libertação Popular, onde exerceu trabalhos burocráticos. Em 1976 com a morte de Mao Zedong, surgiu a “literatura de cicatrizes”: livros que descreviam e criticavam a política chinesa e relatavam experiências negativas com o regime, o que permitiu maior abertura criativa aos escritores da época. Em 1984 entrou na Academia de Arte do Exército de Libertação Popular, ponto de virada na sua carreira como escritor, pois pôde ter contato com autores como Gabriel García Márquez, representante do gênero literário “realismo mágico”. Tal gênero, no qual as obras de Mo Yan se enquadram, utiliza a inserção de elementos imaginários em cenários reais e cotidianos, sendo característico da literatura latino-americana do século XX, com auge nas décadas de 60 e 70 como reação aos regimes ditatoriais da época. Apesar dessa influência externa, suas estórias possuem como base a cultura chinesa: tradições orais, contos populares, questões históricas e sociais e a literatura chinesa clássica (em especial a produção de Lu Xun, o “pai da literatura chinesa moderna”), são elementos intrínsecos em seu trabalho.
Seu primeiro romance publicado, Sorgo Vermelho (1986) sobre camponeses frente à invasão japonesa na China, foi um sucesso e adaptado já no ano seguinte para o cinema sob a direção de Zhang Yimou, o qual ganhou o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim em 1988.
No entanto, nem todas as obras do autor receberam a mesma aclamação: em 1996 seu livro Peito Grande e Ancas Largas foi amplamente criticado por conta de seu conteúdo sexual e crítica à desigualdade de gênero presente na China, o autor então foi obrigado pelo governo a escrever uma crítica ao próprio trabalho e o livro foi retirado de circulação. Sobre essa situação, o escritor relata ao Prêmio Nobel: “Meu trabalho demoliu um conceito literário ossificado que havia acorrentado escritores chineses por décadas; muitas peças mal foram publicadas e criaram tempestades de controvérsia. Não é exagero dizer que corri um risco considerável com o que escrevi, e muitas pessoas ficaram chocadas e ofendidas ao saber que um departamento de literatura de academia militar havia produzido um escritor como eu.”. No ano seguinte, Mo Yan deixou seu cargo no exército e passou a trabalhar em uma procuradoria, dando continuidade a sua produção literária.
Após essa introdução, passamos para a discussão sobre o excerto de The Garlic Ballads (1988) disponibilizado previamente para o encontro. Os participantes contribuíram muito para a análise do texto, apontando a presença de elementos da natureza e personagens esféricos, a crítica ao regime e a figuras políticas corruptas e hipócritas e também semelhanças com as sátiras de Lu Xun. Foram também levantadas questões interessantes como o gosto da população chinesa por leitura e a forma como isso é estimulado no sistema educacional, o alto consumo das próprias produções culturais.
➡️ Agradecemos a participação na nossa 2ª Sessão de Estudos. Nos vemos na próxima, que acontecerá de forma remota, no dia 08/05! Para saber mais: gedcc.proec.ufabc.edu.br/sessoes-de-estudo.
Referências
LU XUN. O diário de um louco: contos completos de Lu Xun. Tradução de Beatriz Henriques, Cesar Matiusso, Ho Yeh Chia, Marcelo Medeiros, Marina Silva, Pedro Cabral. 1. ed. São Paulo: Editora Carambaia, 2022. 568 p.
QUATRO CINCO UM. Histórias para libertar. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/resenhas/literatura/historias-para-libertar/. Acesso em: 7 abr. 2025.
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. 6 livros para conhecer realismo fantástico. Disponível em: https://centrocultural.sp.gov.br/6-livros-para-conhecer-realismo-fantastico/. Acesso em: 7 abr. 2025.
THE NOBEL PRIZE. The Nobel Prize in Literature 2012. NobelPrize.org. Nobel Prize Outreach, 2025. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2012/summary/. Acesso em: 7 abr. 2025.
EXAME. Mo Yan leva Nobel de Literatura 2012 com muito a dizer. Disponível em: https://exame.com/casual/mo-yan-leva-nobel-de-literatura-2012-com-muito-a-dizer/?utm_source=copiaecola&utm_medium=compartilhamento. Acesso em: 7 abr. 2025.
IBRACHINA. Literatura. Disponível em: https://ibrachina.com.br/literatura/?amp. Acesso em: 7 abr. 2025.
PONTO FINAL. A literatura chinesa contemporânea tem obtido um sucesso esplêndido. Disponível em: https://pontofinalmacau.wordpress.com/2014/12/09/a-literatura-chinesa-contemporanea-tem-obtido-um-sucesso-esplendido/. Acesso em: 7 abr. 2025.
ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Chinese literature. Disponível em: https://www.britannica.com/art/Chinese-literature. Acesso em: 7 abr. 2025.
CHINANDO. Os 4 romances clássicos da literatura chinesa (四大名著). Disponível em: https://chinando.com.br/f/os-4-romances-cl%C3%A1ssicos-da-literatura-chinesa-%E5%9B%9B%E5%A4%A7%E5%90%8D%E8%91%97. Acesso em: 7 abr. 2025.